O
sertão nordestino é um lugar místico, capaz de inspirar verdadeiras vocações
religiosas. Um exemplo da fertilidade espiritual dessa terra árida e desértica
semelhante à Palestina, podemos encontrar nas figuras dos beatos e beatas (como
José Lourenço e Maria de Araujo), dos profetas populares e místicos (como
Antonio Conselheiro) e dos apóstolos do sertão (como Padre Ibiapina e Padre
Cícero). Entre as figuras e personagens mais significativas de nossa
religiosidade devemos lembrar aqueles que surgem à margem da sociedade e da
religião estabelecidas, os pobres, os analfabetos, os negros e as mulheres.
Neste sentido, destaca-se a figura de Maria Madalena do Espírito Santo de
Araujo (1863-1914), a ‘beata do milagre’ de Juazeiro do Norte, que sofreu com a
exclusão, sendo considerada embusteira e mentirosa, porque o famoso ‘milagre
eucarístico’ acontecido no final do século XIX na cidade de Juazeiro do Norte
tinha como personagem central uma mulher feia, pobre, negra e analfabeta.
Esta
mulher desde muito cedo apresentou tendências místicas, voltada para as práticas
ascéticas da oração, jejum, penitência, além de ter visões, como o ‘casamento
espiritual’ com Cristo quando era ainda criança, receber os estigmas de Cristo,
ver Maria e os Santos, o que a levou a dedicar-se a uma vocação religiosa que a
conduziu ao sofrimento e ao esquecimento, ao fim de sua vida seu tumulo foi
violado e seus restos mortais foram perdidos. Mesmo o Padre Cícero Romão Batista,
considerado santo pelo povo devoto do nordestino e o principal responsável
pelos fatos milagrosos, reconhecia as qualidades religiosas e espirituais de
Maria de Araujo. O nome desta mulher ‘Maria Madalena do Espírito Santo de
Araujo’ traz a marca da religiosidade, ‘Maria’, como as duas principais Marias
da Bíblia, Maria de Nazaré, a mãe do salvador, e Maria Madalena, a pecadora
redimida, e por fim ‘do Espírito Santo’ (em hebraico ‘espírito’ é nome
feminino, ‘ruach hakodesh’), lembrando assim a presença do espírito como sopro
que dá vida, que anima e dá coragem, em especial aos perseguidos, para suportar
as injustiças desse mundo.
Neste
ano de 2014, lembramos o centenário de sua morte (17 de janeiro), embora sua
memória tenha sido apagada da historia e da religião, permanece seu exemplo de
vida e dedicação espiritual que só tem precedentes na vida dos santos e
mártires cristãos, os quais sempre foram objeto de perseguição e morte por
parte dos poderes políticos e religiosos das diversas épocas. A Igreja oficial
se via diante de um dilema, pois se de um lado era necessário resguardar a fé
dos ataques dos protestantes, dos positivistas e dos maçons, todos descrentes
em relação à veracidade dos fatos da religião católica, por outro lado era
necessário evitar o avanço descontrolado do cristianismo popular e laico,
eivado de milenarismos e misticismos, que poderiam por em cheque a autoridade
do clero e do magistério, bem como dos dogmas teológicos aceitos pelos
intelectuais da Igreja, por fim, havia a questão dos milagres, das romarias e
da renovação da fé proporcionada pelas devoções do catolicismo sertanejo. As
questões se acumulavam: poderia Cristo deixar a Europa para fazer milagres numa
cidade perdida no interior do Nordeste? Poderia uma beata ignorante, mestiça e
pobre ter se tornado uma mediadora dos sinais divinos, em oposição aos teólogos
e o clero instituído pela Igreja de Cristo?
É
notável observar que, apesar de ser uma igreja cujos membros em sua maioria são
mulheres, que venera de forma toda especial Maria, a mãe do Salvador, que
reconheça Maria Madalena como ‘apostola apostolorum’ (apóstola dos apóstolos) permaneça
ainda uma igreja onde não há sacerdotisas, onde as mulheres ainda são vistas
com suspeita (as ‘degredadas filhas de Eva’). Uma instituição hierarquizada de
forma medieval que mantém arcaísmos que minam seu discurso sobre direitos
humanos, conservando contradições que precisam ser superadas urgentemente. Só
assim a Igreja ainda poderá assumir seu lugar como ‘mater et magistra’(mãe e
mestra), títulos ironicamente femininos numa igreja tão masculina.
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