22 de dezembro de 2014

O significado pascal do Natal

    
  O Natal do Senhor é uma das mais belas festas do calendário litúrgico do Cristianismo, muito embora poucos saibam que ela não é a principal, a celebração da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus (a Páscoa) é o eixo da liturgia e doutrina cristã (Catecismo, 2ª parte, 1169). Tentaremos apresentar brevemente alguns temas do Natal a partir da chave de leitura pascal, ou seja, entender o significado pascal do Natal, pois os evangelhos foram escritos após a experiência da ressurreição de Jesus e devem ser lidos sob essa chave de leitura.
   As narrativas do nascimento de Jesus se encontram apenas nos evangelhos escritos por Mateus e Lucas (Mt cap. 1-2, Lc 1-2), enquanto os evangelhos segundo Marcos (considerado o primeiro a ser escrito) e o de João (que não é sinótico), iniciam com o encontro de Jesus com João Batista (Mc 1; João 1), por quem foi batizado para cumprir toda a justiça. Originalmente a narrativa dos evangelhos iniciava no Batismo de Jesus, seguia sua missão (palavras e ações) e encerrava com sua Paixão. As narrativas do Natal são, pois, escritas segundo a experiência pascal e por sua luz devem ser lidas. A estrutura da narrativa natalina com variações em Mateus e Lucas se constitui de uma forma básica: genealogia, anunciação, gravidez de Maria, encontro com Isabel, nascimento de Jesus, encontro com os Magos, perseguição de Herodes, fuga para o Egito, apresentação de Jesus no templo. 
    As genealogias traçam a descendência de Jesus desde Adão, passando por Abraão e culmina em Davi, o rei ungido, nascendo em Belém da Judéia (Mt 1,1; Lc 2, 23-38)). O nome Belém (hebraico Beit-lehem) significa a ‘casa do pão’ e nos faz lembrar o anuncio da paixão de Jesus que se apresenta na Ceia pascal como “o pão descido do céu”, o pão que será partido, partilhado por todos, cuja carne e sangue são sinais de amor e entrega por nossa salvação (João 6, 48-58). O nascimento numa manjedoura (Lc 2, 16) é outra alusão ao alimento que Jesus se tornará para dar vida à humanidade através da Eucaristia. Na visita dos Magos do Oriente estão presentes os sinais da condição salvífica de Jesus, o ouro (realeza), incenso (sacerdócio) e mirra (sacrifício), esta ultima uma clara alusão a paixão e morte de Cristo (Mt 2, 11). O reconhecimento da realeza e divindade de Jesus pelos Magos do Oriente (Mt 2,1) está presente nos eventos posteriores, basta lembrar o reconhecimento da filiação divina de Jesus por parte dos pagãos e gentios, em especial do centurião que exclama diante da cruz “verdadeiramente esse homem era o Filho de Deus” (Mc 15, 39). A perseguição por Herodes está relacionada ao incomodo e ameaça que Jesus representará para os poderes constituídos em Jerusalém (chefes judeus e romanos), a matança dos inocentes está relacionada ao episodio do nascimento de Moisés (Mt 2,16). Maria que está perplexa diante de tais eventos permanece em seu silencio meditativo até o momento mais elevado que se encontra na Paixão (Lc 2, 19). 
    Neste sentido, podemos rastrear sinais pascais dos eventos presentes nas narrativas natalinas, mostrando assim que a verdadeira riqueza dessas narrativas sublimes se encontra naquele que foi o maior sinal do amor e da presença de Deus entre nós (o Emanuel, Deus conosco), a entrega de Jesus na Paixão da Cruz e sua vitoria na ressurreição.  

24 de janeiro de 2014

Maria de Araújo, a beata do milagre


O sertão nordestino é um lugar místico, capaz de inspirar verdadeiras vocações religiosas. Um exemplo da fertilidade espiritual dessa terra árida e desértica semelhante à Palestina, podemos encontrar nas figuras dos beatos e beatas (como José Lourenço e Maria de Araujo), dos profetas populares e místicos (como Antonio Conselheiro) e dos apóstolos do sertão (como Padre Ibiapina e Padre Cícero). Entre as figuras e personagens mais significativas de nossa religiosidade devemos lembrar aqueles que surgem à margem da sociedade e da religião estabelecidas, os pobres, os analfabetos, os negros e as mulheres. Neste sentido, destaca-se a figura de Maria Madalena do Espírito Santo de Araujo (1863-1914), a ‘beata do milagre’ de Juazeiro do Norte, que sofreu com a exclusão, sendo considerada embusteira e mentirosa, porque o famoso ‘milagre eucarístico’ acontecido no final do século XIX na cidade de Juazeiro do Norte tinha como personagem central uma mulher feia, pobre, negra e analfabeta.
Esta mulher desde muito cedo apresentou tendências místicas, voltada para as práticas ascéticas da oração, jejum, penitência, além de ter visões, como o ‘casamento espiritual’ com Cristo quando era ainda criança, receber os estigmas de Cristo, ver Maria e os Santos, o que a levou a dedicar-se a uma vocação religiosa que a conduziu ao sofrimento e ao esquecimento, ao fim de sua vida seu tumulo foi violado e seus restos mortais foram perdidos. Mesmo o Padre Cícero Romão Batista, considerado santo pelo povo devoto do nordestino e o principal responsável pelos fatos milagrosos, reconhecia as qualidades religiosas e espirituais de Maria de Araujo. O nome desta mulher ‘Maria Madalena do Espírito Santo de Araujo’ traz a marca da religiosidade, ‘Maria’, como as duas principais Marias da Bíblia, Maria de Nazaré, a mãe do salvador, e Maria Madalena, a pecadora redimida, e por fim ‘do Espírito Santo’ (em hebraico ‘espírito’ é nome feminino, ‘ruach hakodesh’), lembrando assim a presença do espírito como sopro que dá vida, que anima e dá coragem, em especial aos perseguidos, para suportar as injustiças desse mundo.
Neste ano de 2014, lembramos o centenário de sua morte (17 de janeiro), embora sua memória tenha sido apagada da historia e da religião, permanece seu exemplo de vida e dedicação espiritual que só tem precedentes na vida dos santos e mártires cristãos, os quais sempre foram objeto de perseguição e morte por parte dos poderes políticos e religiosos das diversas épocas. A Igreja oficial se via diante de um dilema, pois se de um lado era necessário resguardar a fé dos ataques dos protestantes, dos positivistas e dos maçons, todos descrentes em relação à veracidade dos fatos da religião católica, por outro lado era necessário evitar o avanço descontrolado do cristianismo popular e laico, eivado de milenarismos e misticismos, que poderiam por em cheque a autoridade do clero e do magistério, bem como dos dogmas teológicos aceitos pelos intelectuais da Igreja, por fim, havia a questão dos milagres, das romarias e da renovação da fé proporcionada pelas devoções do catolicismo sertanejo. As questões se acumulavam: poderia Cristo deixar a Europa para fazer milagres numa cidade perdida no interior do Nordeste? Poderia uma beata ignorante, mestiça e pobre ter se tornado uma mediadora dos sinais divinos, em oposição aos teólogos e o clero instituído pela Igreja de Cristo?

É notável observar que, apesar de ser uma igreja cujos membros em sua maioria são mulheres, que venera de forma toda especial Maria, a mãe do Salvador, que reconheça Maria Madalena como ‘apostola apostolorum’ (apóstola dos apóstolos) permaneça ainda uma igreja onde não há sacerdotisas, onde as mulheres ainda são vistas com suspeita (as ‘degredadas filhas de Eva’). Uma instituição hierarquizada de forma medieval que mantém arcaísmos que minam seu discurso sobre direitos humanos, conservando contradições que precisam ser superadas urgentemente. Só assim a Igreja ainda poderá assumir seu lugar como ‘mater et magistra’(mãe e mestra), títulos ironicamente femininos numa igreja tão masculina.