30 de junho de 2010

A Bíblia na Literatura de Cordel


O Cordel é uma forma popular de poesia que permanece com toda firmeza, apesar das inovações tecnológicas e do pessimismo de muitos pesquisadores que o viam como artigo de museu. O Cordel adquiriu novas feições, mas sua essência mantém-se inalterada.
O tema que pretendemos abordar neste ensaio é a expressão popular (cordel) das histórias narradas na Bíblia. Para isso nos utilizaremos dos cordéis que dizem respeito a este tema seja a respeito das histórias do Antigo Testamento, seja do Novo Testamento, estas últimas concentram-se em torno da figura de Jesus Cristo. Além de atentar para estes temas este ensaio que influir para que se dê continuidade aos temas bíblicos que tanto tem repercussão no meio religioso nordestino, levando assim ao melhor conhecimento da Bíblia e sua difusão em forma poética (1).
Dividiremos o tema em dois subitens, ou seja, histórias do Antigo Testamento e do Novo Testamento em que se destaca a figura de Jesus.
Entre os folhetos utilizados podemos destacar para o Antigo Testamento: A história de José do Egito de José Bernardo da Silva, Sansão e Dalila e Salomão e Sulamita de Rouxinol do Rinaré, História da Rainha Ester de Arievaldo Viana Lima. Em relação ao Novo Testamento citamos: Um tributo a Jesus de Costa Senna e Marco Aurélio e Jesus Cristo, o Salvador, de Zé Vicente da Paraíba.
A importância do tema abordado está na própria origem da Bíblia que como se sabe é também uma escrita popular. A Bíblia, ou o conjunto de livros que compõem as escrituras judaicas, é um conjunto multiforme de lendas, mitos, contos, cânticos, hinos, salmos, histórias (não no sentido moderno do termo) e parábolas que narram a vida do povo hebreu e sua experiência do Transcendente (Deus). A Bíblia é uma biblioteca escrita pelo povo e para o povo, sendo uma forma pela qual ele (o povo) lê a sua história e reflete suas experiências à luz da inspiração divina.
De igual forma o Cordel é uma forma poética de refletir sobre as experiências do povo. Os Cordéis são uma biblioteca popular de lendas, fatos, anedotas, contos, sátiras e biografias. A importância do Cordel tem decrescido em relação aos novos meios de comunicação de massa, mas ele continua com seu espaço reservado. Ao contrário do que se pode imaginar as histórias narradas em cordel não deixam de refletir sobre aspectos diversos uma consciência coletiva popular, com seus conceitos e preconceitos.

1.    O Antigo Testamento.

Os cordéis que dizem respeito ao Antigo Testamento relatam a vida de quatro figuras distintas, a saber, José do Egito (Gêneses), Ester (Ester), Salomão e Sulamita (Livro dos Reis, Crônicas, Cânticos do Cânticos) e Sansão e Dalila (Juízes). Dois relatam a vida de pessoas singulares, José do Egito e Ester, e os outros dois narram os amores de Salomão e Sansão. As figuras em destaque nestas histórias, além dos protagonistas bíblicos, são mulheres: Ester, Sulamita, Dalila, etc. Com as figuras femininas estão todo o peso do preconceito e do machismo tanto judaico quanto nordestino, ambas as sociedades patriarcais em que a mulher ocupa lugar de inferioridade, veja-se, por exemplo, o caso do Gênese com Eva. Inferioridade esta contrabalançada pela figura de Maria no catolicismo popular.
Nos casos de Salomão e Sansão o amor aparece como o grande tema, perpassando pela traição e sedução. Já a figura de Ester traz uma mulher que luta pelo seu povo alcançando as graças do rei Assuero (Xerxes). Feita estas ressalvas sobre o tema passemos ao comentário mais detido do texto.
Uma das características marcantes do Cordel é o prólogo ou a invocação das musas, este recurso revela que o poeta em sua sábia humildade reconhece o dom recebido por inspiração, que ele não credita a si mesmo para vanglória, mas atribui a forças divinas e sobrenaturais, vejamos alguns exemplos:
Supremo Ser Incriado
Santo Deus Onipotente
Mande teus raios de luz
Ilumina a minha mente
Para transformar em versos
Uma história comovente.”

Ou estes de Rouxinol do Rinaré:

Peço, ó musa predileta,
A luz da inspiração
Pra este humilde poeta
Escrever com perfeição
Pra com a pena servi-la
Narro Sansão e Dalila
Nos enlaces da traição

Ainda de Rouxinol:
Me inspire ó musa divina
Com toda sabedoria
Dai-me da mais rica mina
As pérolas da poesia
Para rimar meu poema
Nesse interessante tema
Que escolhi neste dia...”

Este recurso traz em si uma beleza poética de extrema simplicidade e que não pode faltar no Cordel por sua introdução tradicional. Outras obras antigas também se iniciam desta forma como, por exemplo, em Homero e Hesíodo: “Canta, ó musa, a ira de Aquiles, filho de Peleu...” (Ilíada, canto I).
O Cordel “José do Egito” não traz invocação às musas, mas vai direto ao tema.
Logo após esta introdução ou invocação o autor nos expõe o tema abordado ou faz uma retrospectiva da história do tema, no caso dos temas bíblicos há reminiscências dos primeiros tempos que de alguma forma trazem o feixe da história narrada.
No caso dos temas de amor podemos citar estes versos de “Sansão e Dalila” de Rouxinol do Rinaré:
Desde o tempo de Adão
(Diz o Velho Testamento)
A mulher conquista o homem
Com malícia e argumento.
Eva, bela, encantadora,
Nua, fêmea e sedutora
Foi a mãe do sofrimento”.
Para introduzir o tema Rouxinol narra os casos de amor de Ló, Davi e Salomão para então passar a Sansão. A perspectiva é a da mulher sedutora e corruptora do homem, no caso Dalila. Este tema também é abordado no Cordel de José Bernardo da Silva ao falar da mulher de Potifar que tentou seduzir José do Egito, mas se viu frustrada e recorre à vingança contra ele:
Em poucos dias depois
A mulher de Potifar
Intentou vingar-se dele
Não pode realizar
Por meio da falsidade
Prometeu de se vingar

Disse ela a Potifar
Seu empregado é ruim
Inda ontem aquele infame
Dirigiu pilhéria a mim
Sendo eu a sua esposa
Não posso ficar assim.”
Muito embora neste Cordel o tema não envolva a questão da mulher o autor toca no assunto devido sua importância na trama bíblica, como forma de alerta sobre os perigos da paixão. José Bernardo da Silva procura simplesmente narrar a história de José sem ater-se muito a comentários moralistas a respeito de sua conduta.
Já no Cordel sobre Ester Arievaldo Viana aponta a figura de Ester como modelo do feminino, já uma prefiguração bíblica de Maria, a mulher virtuosa que defende seu povo tendo opção pelos fracos e desvalidos (ver o Magnificat de Maria, Lc.):
Falo da vida de Ester
Que na Bíblia está descrita
Era uma judia virtuosa
E extremamente bonita
Por obra e graça divina
Teve venturosa dita.”

E em defesa de seu povo Ester toma posição, como versa ainda Arievaldo:

O leitor deve lembrar
Que Ester, a bela rainha
Já sabia do decreto
E qual a sorte mesquinha
Destinada a seu povo
Porém o medo a detinha.

Há dias que ela esperava
Uma oportunidade
Para falar com o rei
Contar-lhe toda verdade
E, em favor de seu povo
Implorar-lhe a piedade.”



[1] Viana, Arievaldo


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