Uma das
figuras mais misteriosas e intrigantes do Novo Testamento é Tomé, o Dídimo
(gêmeo), seu nome percorreu o mundo, partindo da Palestina, atravessando o
Oriente e chegando até a América. Falaremos neste ensaio sobre as várias
versões e lendas a respeito de Tomé.
Segundo o
texto bíblico: “Um dos doze, Tomé, o
dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Os outros discípulos, então lhe
disseram: Vimos o Senhor! Mas ele lhes disse: ‘Se não vir em suas mãos o lugar
dos cravos e se não puser o meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu
lado, não crerei.’ Oito dias depois achavam-se os discípulos, de novo, dentro
de casa, e também Tomé com eles. Veio Jesus,estando as portas fechadas,pôs-se
no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’. Disse depois a Tomé: ‘Põe o teu
dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas
incrédulo,mas crê!’ Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus’. Jesus lhe
disse: ‘Porque viste, creste,felizes os que não viram e creram” (João 20,
24-29). O evangelista
quis representar o incrédulo ou o que só crê no que vê e toca, alguém que não
tem convicção espiritual, mas, se, por um lado é um possível descrente, por
outro lado é uma pessoa que não se contenta com boatos e comentários, porém
Jesus lhe ensina a crer em algo que ultrapassa os sentidos,como dirá Paulo: “A fé é uma posse antecipada do que se espera
um meio de demonstrar as realidades que não se vêem. Foi por ela que os antigos
deram seu testemunho” (Hebreus 11,1-2).
Segundo fontes encontradas no Egito em 1946, sob nome Nag
Hammadi, há um manuscrito, provavelmente dos séculos II e III de nossa era,
denominado Evangelho de Tomé, um escrito apócrifo gnóstico, onde se narra
palavras de Jesus a Tomé, o gêmeo: “Eis
as palavras secretas ditas por Jesus, o Vivente, escritas por Judas Tomé, o
gêmeo” (O Evangelho de Tomé). A
forma do Evangelho de Tomé tem como característica principal ditos de Jesus,
que revelam uma tradição de coleções de ditos e/ou feitos do mestre colocados
sem uma sequência orgânica, em seu conteúdo trata de temas caros aos gnósticos,
onde Jesus representa o homem perfeito e seus ditos misteriosos encontram sua
interpretação dentro da simbologia da escola gnóstica, muitos dos ditos são
variações daqueles dos evangelhos canônicos. Eis alguns: “1. E ele disse: Aquele que encontrar a interpretação destas palavras
não provará a morte”,“42. Jesus
disse: Sede passantes”,“112. Jesus disse: Infeliz da carne que depende da alma;
infeliz da alma que depende da carne” (O
Evangelho de Tomé).
Mas isso não
é tudo no que diz respeito a nossa curiosa figura, restam ainda as lendas e
relatos sobre a passagem de Tomé pelo Oriente (Índia) e pela América (México e
Brasil), pois segundo se sabe ele foi o ‘apóstolo das Índias’. Existem alguns
relatos de viajantes como Marco Pólo e Francisco Xavier, que atravessaram a
Europa rumo à China e Japão e descrevem vários costumes dos povos asiáticos, do
primeiro podemos ler em sua narrativa das viagens chamado ‘Milione’ (O Livro das maravilhas) algo sobre Tomé: “O corpo de São Tomé, o apóstolo, encontra-se
na província de Maabar (...) Os sarracenos desta região são muito devotos de
São Tomé, porque acham que ele foi um grande profeta sarraceno, razão porque o
chamam de ‘Varria’, isto é, Santo.(...) Este santo cura todos os leprosos
cristãos. Eis como ele morreu, (...). São Tomé estava orando numa ermida, num
bosque, cercado de pavões (...). Enquanto rezava, um caçador da casta dos
ghavi, que andava caçando pavões atirou uma flecha para caçar uma daquelas
aves, e uma outra nas costas de São Tomé, que ele não vira. Ferido desse modo o
santo continuou orando docemente, até exalar o último suspiro e entregar sua
alma a Deus. Antes de ter se retirado para a ermida desse bosque, ele já havia
operado umas conversões de indianos ao cristianismo.” (Pólo, Marco. Il Milione).
Como vemos, Tomé gozava de grande estima mesmo entre os pagãos orientais
e como no período das descobertas a América era confundida com o Oriente era
lógico crer que se encontrariam indícios do que Marco Pólo narrou, o qual tinha
muito prestígio entre os europeus, pois estes não conheciam muito ou mesmo nada
do Oriente. A idéia de que Tomé estivera nas Índias logo se fortaleceu quando
do contato entre europeus e indígenas, o que nos atestam os relatos dos Jesuítas.
Há analogias de Tomé com o famoso deus Quetzalcoatl (a serpente emplumada) do
México, que significa ‘gêmeo’ como o
Tomé bíblico, e esse deus Tolteca tinha uma ‘cruz’ em seu chapéu de ponta (por ser o deus dos quatro pontos cardeais).
Segundo Enrique Dussel, filósofo e historiador argentino, esta cruz e sua
relação com o grande dilúvio e ‘tantos
outros signos’, fez com que o Pe Diego Duran pensasse que o sacerdote e rei
tolteca – e depois deus – era nada menos que o apóstolo Tomé, que da Palestina
teria ido á Índia e dali teria vindo ao México.
Também no Brasil encontramos relatos sobre a lenda de Tomé (Sumé ou Zomé)
entre nossos índios, descrita pelo célebre Câmara Cascudo, no ‘Dicionário do Folclore Brasileiro’: “Sumé personagem misteriosa, homem branco
que, antes do descobrimento, apareceu entre os indígenas, ensinando-lhes o
cultivo da terra e regras morais. Repelido, abandonou a região, caminhando
sobre as águas do mar. “Dizem eles que São Tomé, a quem eles chamam Zomé passou
por aqui, isto lhes ficou por dito por seus antepassados e que suas pisadas
estão assinaladas junto de um rio; as que eu fui ver por mais certeza de
verdade e vi com os próprios olhos, quatro pisadas mui grandes com seus
dedos,as quais algumas cobre o rio,quando enche; dizem também que quando deixou
estas pisadas,ia fugindo dos índios que o queriam frechar, e chegando ali se
lhe abrira o rio e passara por meio dele à outra parte,sem se molhar e dali foi
para a Índia. Assim mesmo contam que, quando o queriam frechar os índios, as
frechas se tornavam para eles, e os matos lhe faziam caminho por onde passasse.”
(Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, 101, a carta é de 1549).
Continua Câmara Cascudo: “Também é
tradição antiga entre eles que veio o bem-aventurado apóstolo São Tomé a esta
Bahia, e lhes deu a planta de Mandioca e das bananas de São Tomé; e eles, em
paga deste benefício e de lhes ensinar que adorassem e servissem a Deus e não
ao demônio,que não tivessem senão uma mulher e não comessem carne humana,o
quiseram matar e comer, seguindo com efeito até uma praia onde o santo se
passou,de uma passada,a ilha de Maré, distância de meia légua, e daí não sabem
por onde. Devia de ser indo para a índia,que quem tais passadas bem podia
correr todas estas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse
tais passadas.” (Frei Vicente de Salvador, Historia do Brasil (1627), 103).
Também o Pe Antonio Vieira nos dá algumas indicações sobre a lenda a respeito
do apóstolo Tomé no Brasil em seus “Sermões”.
Concluindo, podemos perceber como determinadas
figuras míticas e lendárias como a de Tomé, o apóstolo, podem ter uma
continuidade na cultura popular, atravessando o tempo e o espaço, servindo de
arquétipo do homem santo, do grande civilizador e ainda do missionário
além-fronteiras.
Referências
Bíblia de Jerusalém
Bíblia de Jerusalém
Marco Polo, O livro das Maravilhas.
Cascudo, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro
Padre Antonio Vieira. Sermões
VVAA. O Evangelho de Tomé. in: Apócrifos da Bíblia.
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